segunda-feira, 2 de julho de 2012

Aos adversários, só resta sentir Fúria

Olá, tudo bem? Eu sou a Seleção Espanhola de Futebol, mas pode me chamar de Fúria. Esse é um apelido que me deram já faz muito tempo. Alguns inclusive afirmam que essa alcunha vem do "futebol raçudo e aguerrido" que eu supostamente apresentava na metade do século passado.

Mas isso não é verdade.

O pessoal da vizinhança aqui na Europa, que viveu bem aquele período e "apanharam" muito de Puskas, Di Stefano e cia., sabem bem qual é o sentido correto dessa Fúria.

Que por sua vez ficou adormecida por um longo inverno.

Fiquei conhecida pelas novas gerações como amarelona e meu apelido forte caiu em descrédito.

Agora voltei aos bons tempos, e posso dizer à vocês como estou trazendo de volta também este sentimento aos meus adversários.

Bom, pra que eu possa falar do meu momento especial pra vocês, preciso voltar onde tudo começou, em 2006, na Copa do Mundo da Alemanha. Fui pra lá com o meu habitual time forte que entrava em campo sem propósito e sempre perdia quando encontrava uma equipe mais organizada. Lá, isso aconteceu nas oitavas de final, contra a França, quando tomei 3x1 com direito a um belo gol de Zidane nos acréscimos do segundo tempo.

Grave bem este gol, pois nunca mais você vai ouvir falar de um gol sofrido por mim em mata-mata de Euro ou de Copa do Mundo.

A partir daquela eliminação as coisas mudaram pra mim, em especial quando passei a acompanhar um fenômeno que se iniciava na região que mais me odeia, a Catalunha. Em uma destas ironias da vida, o único "irmão" com quem vivo brigando, seria o meu caminho para a glória.

Meu treinador, Luis Aragonés, passou a implantar ideias do principal time daquela região em mim. Posse de bola, toques precisos, triangulações, ultrapassagens, movimentações, marcação dupla, tripla, quádrupla na saída de bola adversária. A Euro de 2008, realizada na Áustria e na Suíça, seria o início deste projeto, mas já deu resultado logo de cara. Venci a competição sem levar gols nem nas quartas, nem na semi, nem na final contra a Alemanha.

Veio 2010 e com meu novo treinador, Vicente Del Bosque, o sistema catalão foi plenamente implantado na Copa do Mundo. Comecei mal, perdi pra Suíça, e voltei a ser alvo das piadinhas sobre amarelar em Copas. Mas dali por diante impus meu futebol e venci todo mundo. Na final contra a Holanda, 1x0 na prorrogação pra dar a primeira Copa de minha história. Estava enfim consolidada no hall das maiores seleções.

Mais dois anos se passaram e estava eu de volta em uma Euro, essa que terminou ontem. Começa aí a ficar claro o porque de me chamarem de Fúria desde os anos 50.

Neste meio tempo, o time lá da Catalunha ganhou tudo o que é possível uma equipe ganhar. Duas vezes.

E toda essa força acabou se refletindo em mim, já que a base do time deles é também a base do meu time, reforçado pelos craques do meu grande orgulho Real Madrid.

E aí fica fácil entender o porquê do meu apelido ser “Fúria”.

Hoje, eu sou irritantemente competente.

Isso mesmo, dá raiva me ver jogar porque eu vou ganhar. Sempre ganho. Você sabe, eu sei, todo mundo sabe. E torcedor nenhum gosta disso.

No começo todo mundo até me acha legal, um futebol inovador e tal. Mas depois de um tempo as pessoas ficam furiosas comigo e com meu estilo vencedor. Daí em diante torcem contra, criticam. Nesta Euro fui até vaiada. Tudo isso porque meu estilo de futebol não sabe mais perder. Isso acontece com o time da Catalunha, acontece comigo, e sempre acontecerá com uma equipe que é a melhor de modo inquestionável.

Mas de onde veio esse sistema tão vencedor? Caiu do céu? É um milagre? Não, foi trabalho mesmo.

Nosso irmão “ovelha negra” implantou uma filosofia oriunda das ideias de Johan Cruyff, pilar da inesquecível laranja mecânica da década de 70, onde o time todo tem que saber jogar bola. Não adianta ter três, quatro jogadores habilidosos do meio pra frente, e cinco, seis botinudos do meio pra trás. É um trabalho que vem desde a base, criando jogadores completos, com recursos técnicos para jogar na defesa ou no ataque. Assim, com dez jogadores de linha capacitados a trocar passes, consegue-se ficar com a bola o tempo que quer. A disposição tática passa então a funcionar no sentido de que todos os jogadores tenham sempre mais de uma opção de passe.

Para auxiliar essa movimentação total entre o meio e o ataque foi abolida, tanto na Catalunha quanto na seleção, a figura do centro-avante. Jogamos no 4-6-0 sem medo de ser feliz. Por vezes nessa Euro quem apareceu na área pra finalizar foi o Fábregas, o Iniesta, o David Silva, o Xavi e até mesmo o Xabi Alonso. Como sou bem organizada, a subida de um não prejudica o posicionamento dos outros.

E nesse sistema de controle total das partidas vou tirando a paciência das pessoas. É instintivo, eu sei. Por vezes você vai torcer pro touro pegar o toureiro. Mas vamos combinar que tá difícil de pegar o toureiro aqui hein?

Estou sabendo que a Alemanha está tentando alguma coisa do tipo com o Löw. Mas parece que por lá tá demorando um pouco mais para o projeto dar resultados. E enquanto ninguém acompanha minha evolução, eu sigo ganhando.

Ah, aliás, ontem eu venci a Euro de novo, caso você ainda não saiba. Apliquei a maior goleada da história das finais entre seleções, 4x0 na tetracampeã mundial Itália. A competição foi bem legal. A Holanda decepcionou, Portugal se superou, a Alemanha impressionou e naufragou, enfim teve muita coisa bacana e gostei bastante de participar com meus vizinhos de mais essa festa organizada pra mim.

Agora vou me preparar mais um pouquinho porque daqui a dois anos tem outra Copa, a do Mundo, aí no Brasil.

Preciso tornar este grupo a maior seleção européia de todos os tempos ao vencer Euro-Copa-Euro-Copa de modo ininterrupto.

Não serei petulante ao ponto de pedir a torcida de vocês aí no Brasil. Mesmo depois que vocês forem desclassificados eu sei que isso estará fora de cogitação.

Sei que vocês também se virarão contra mim caso eu continue tocando a bola e vencendo jogos.

E olha, não fiquem constrangidos com esse sentimento de fúria.

É normal.

Eu causo isso nas pessoas.